O antropólogo social Antony Henman, em seu livro "O GUARANÁ;
sua cultura, propriedades, formas de preparação e uso. São
Paulo, Global, 1983. 77p." descreve:
A versão mais completa da história mítica do guaraná
foi publicada em 1954 por Nunes Pereira, em seu livro "Os Índios
Maués":
"Antigamente, contam, existiam três irmãos: Ocumáató,
Icuamã e Onhiámuáçabê.
Onhiámuáçabê era dona do Noçoquem, um
lugar encantado no qual ela havia plantado uma castanheira.
A jovem não tinha marido; porém todos os animais da selva
queria viver com ela.
Os irmãos, ao mesmo tempo, a queriam sempre em sua companhia, porque
era ela quem conhecia todas as plantas com que preparava os remédios
de que precisavam.
Uma cobrinha, conversando com outros animais, certa vez, disse que Onhiámuáçabê
acabaria sendo sua esposa.
Foi então espalhar pelo caminho por onde ela passava todos os dias
um perfume que alegrava e seduzia.
Quando Onhiámuáçabê passou pelo caminho, aspirando
o perfume disse:
- Que perfume agradável!
A cobrinha, que estava próxima, disse a si mesma:
Eu não dizia? Ela gosta de mim!
E, correndo, foi estirar-se mais adiante para esperar a moça.
Ao passar ao seu lado, tocou-a, levemente, numa das pernas.
E isto só bastou para que a moça ficasse prenhe, porque antigamente,
uma mulher, para que isso acontecesse, bastava ser olhada por alguém,
homem, animal, ou árvore, que a desejasse como esposa.
Porém os irmãos de Onhiámuáçabê
não queriam que ela se casasse com gente, animal, ou árvore
que tivesse filhos, porque era ela quem conhecia todas as plantas com que
preparava os remédios de que precisavam.
Por isto, quando a moça apareceu prenhe, os irmãos ficaram
furiosos. E falaram, falaram e falaram, dizendo que não queriam
vê-la com filho.
Chegou o dia do nascimento da criança.
A moça, depois do parto, no barracão feito por ela mesma,
lavou a criança e tratou de criá-la.
Era um menino bonito e forte; e cresceu forte e bonito até a idade
de falar.
Logo que pôde falar, o menino desejou comer as mesmas frutas de que
os tios gostavam.
A moça contou ao filho que, antes de o sentir nas entranhas, plantara
no Noçoquem uma castanheira, para que ele comesse os frutos, mas
que os irmãos, expulsando-a da companhia deles, se apoderaram de
Noçoquem e não o deixaram comer castanhas.
Além disso, os irmãos da moça tinham entregue o sítio
à guarda da Cotia, da Arara e do Piriquito.
O menino, porém, continuou a pedir a Onhiámuáçabê,
mãe dele, que lhe desse a comer as mesmas frutas que os seus tios
comiam.
Um dia então, Onhiámuáçabê, a moça,
resolveu levar o filho ao Noçoquem para comer as castanhas.
Assim, indo a Cotia ao Noçoquem, viu no chão, debaixo da
castanheira, as cinzas de uma fogueira, onde haviam assado castanhas.
A Cotia correu e foi contar o que vira aos irmãos da moça.
Um deles disse que talvez a Cotia se enganasse, o outro disse que não
podia ser verdade.
Discutiram.
E, afinal, resolveram mandar o Macaquinho-da-boca-roxa tomar conta da castanheira,
a ver se aparecia gente por ali.
O menino que havia comido muitas castanhas e cada vez mais as cobiçava,
já conhecendo o caminho do Noçoquem, tornou a ir lá
no dia seguinte.
Ora, os guardas no Noçoquem, que tinham ido adiante, com ordens
de matar a quem ali encontrasse, viram o menino subir, às pressas,
à castanheira.
E, estando próximos, bem próximos, ocultos por outras árvores,
tudo observando, correram e foram esperá-lo debaixo da castanheira,
armados com uma cordinha para decepar a cabeça do comedor de castanhas.
Dando por falta do filho, a mulher já se havia posto a caminho,
para buscar, quando lhe ouviu os gritos.
Correu na direção do filho, mas já o encontrou decepado
às mãos dos guardas. Arrancando os cabelos, chorando e gritando
sobre o cadáver do filho, a moça Onhiámuáçabê
disse:
Está bem, meu filho. Foram os seus tios que mandaram te matar. Eles
pensavam que tu ficarias um coitadinho, mas não ficarás.
Arrancou-lhe primeiro o olho esquerdo e plantou-o. A planta, porém,
que nasceu desse olho não prestava; era a do falso guaraná.
Arrancou-lhe, depois, o olho direito e plantou-o. Desse olho nasceu o guaraná
verdadeiro.
E continuando a conversa com o filho, como se o sentisse vivo, foi anunciando:
Tu, meu filho, tu serás a maior força da Natureza; tu farás
o bem a todos os homens; tu serás grandes; tu livrarás os
homens de uma moléstia e os curarás de outras.
Em seguida juntou todos os pedaços do corpo do filho. Mascou, mascou
as folhas de uma planta mágica, lavou com sua saliva e o suco dessa
planta o cadáver do filho e o enterrou.
Cercou-lhe a sepultura com estacas e deixou um dos seus guardas de inteira
confiança, vigiando-a.
Recomendou a esse guarda, que era o Caraxué, que a fosse avisar,
assim que ouvisse qualquer barulho saído da sepultura, pois ela
saberia quem era.
Passado alguns dias, o Caraxué, ouvindo barulho na sepultura, correu,
e foi avisar Onhiámuáçabê.
A moça veio, abriu o buraco da sepultura e de dentro dela saiu o
macaco Quatá.
Onhiámuáçabê soprou sobre o macaco Quatá
e amaldiçoou-o: andaria sem repouso pelos matos.
Fechou de novo a sepultura a lançou-lhe em cima o sumo das folhas
da planta mágica com que lavara o cadáver.
Dias depois o Caraxué foi avisá-la de que ouvira um barulho
na sepultura do menino.
A moça veio, abriu a sepultura e dele saiu o cachorro-do-mato Caiarara.
Ela soprou sobre ele e o amaldiçoou, para que ninguém o comesse.
Fechou de novo a sepultura e foi embora.
Dias depois o Caraxué foi avisar que ouvira barulho, de novo, dentro
da sepultura.
Onhiámuáçabê foi até lá; abriu
o buraco da sepultura e dele saiu o porco Queixada, levando os dentes que
deveriam caber a todos os maués e a todos os homens.
Onhiámuáçabê expulsou também o porco
Queixada.
(à proporção que saia um bicho da sepultura do menino
e era expulso, a planta do guaraná ia crescendo, crescendo).
Passado alguns dias o Caraxué ouviu outro barulho na sepultura e
foi avisar Onhiámuáçabê.
Ela veio de novo, abriu a sepultura e dali saiu uma criança que
foi o primeiro maué, origem da tribo.
Esse menino era o filho de Onhiámuáçabê, que
ressuscitara.
Onhiámuáçabê agarrou-o, sentando-o nos joelhos.
E pôs-lhe um dente na boca, feito de terra.
(Por isso nós, os maués, procedemos do cadáver e o
nosso dente apodrece).
A mulher foi lavando tudo, tudo, devagarinho, os pés, a barriga,
os braços, o peito, a cabeça do menino com o sumo das folhas
da planta mágica, que mastigara.
Quando ela estava, entretida, fazendo isso com o filho, os seus irmãos
chegaram, de repente e a obrigaram a deixar de lavar-lhe o corpo.
(Este é o motivo porque os maués não mudam de pele,
como a cobra)".
Segundo Henman, devido a uma estrutura narrativa fiel às formas
do discurso e do raciocínio indígenas, não é
de se estranhar que esta versão tem tido pouca ou nenhuma acolhida
entre a população "civilizada" da região
de Maués. Surgiu, então, uma reinterpretação
do mito colocada em termos do folclore caboclo do baixo Amazonas, e caracterizada
pela inclusão de espíritos como Juruparí (Diabo) e
Tupã (Deus), que são inexistentes na cosmologia Saterê-Mawé.
Esta versão romantizada foi originalmente publicada por J.M. da
Silva Coutinho há mais de cem anos, em 1866:
"Na primitiva aldeia, havia um casal notável pelas virtudes.
Refúgio dos infelizes, era a sua choupana como a fonte onde se ia
buscar a consolação.
De tão bons pais saiu um filho
ainda melhor. Já aos seis anos o menino fazia prodígios,
que merecia a adoração de todos. Chuvas abundantes vinham
reverdecer as plantas, que definhavam, se ele implorava esse benefício;
como anjo de paz, fazia cessar as desavenças, e mantinha a união
do povo; muitos doentes foram curados ao simples contacto da sua mão;
uma auréola de felicidade sem fim parecia cercá-lo, transmitindo-se
a todos que se aproximavam.
Tanta ventura porém causava inveja ao
anjo mau (Jurupari), que protestou aniquilar o seu rival. Durante muito
tempo a vigilância do povo impediu que ele realizasse tão
negro projeto; mas um dia, por fatalidade, o bom menino, sem ser visto,
trepou em uma árvore para colher os frutos; Jurupari aproveitou
a ocasião, e transformando-se em cobra, lança-se ao pescoço
do menino, matando-o imediatamente.
Pouco tardou que não fosse apercebida
a falta, e prestes ocorreu a notícia, pondo a tribo em movimento.
Freneticamente foram devassados todos os recantos, encontrando-se finalmente
o corpo da criança de olhos abertos e semblante tão sereno
que parecia rir-se para quem o contemplava. Mas pouco durou a ilusão;
dissipou-se o último lampejo e a verdade foi como um raio que fulminou
a tribo. A esperança fugiu de todos os corações, e
nem havia mais que esperar, morta a causa da felicidade geral. Era um castigo
tremendo, que condenava o povo a eterna desventura.
Uma descarga elétrica
veio suspender a lamentação, e sucedeu-lhe profundo silêncio.
A mãe do menino tomou a palavra e, assim falou aos índios
estupefatos: Tupã, sempre bom, veio consolar-nos nesta grande aflição,
reparando a dor que acabamos de sofrer. Meu filho ressuscitará sob
a forma de uma árvore, que há de construir o nosso alimento
e união curando-nos também todos os males do corpo. Mas é
preciso que seus olhos sejam plantados. Eu não posso exercitar essa
operação; fazei-a vós, como ordena Tupã.
Tais
palavras produziram grande impressão. Niguém se resolvia
a arrancar os olhos do menino, sendo preciso recorrer-se à sorte,
como decidiram os mais velhos.O lugar da plantação foi regado
com as lágrimas de todos, e ali de sentinela ficaram os maiorais
da aldeia. No fim de alguns dias brotou o guaranazeiro
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